A "reforma" do ensino médio e o compromisso de resistir

Data da postagem: 24/03/2023


Ao defendermos a revogação, afirmamos o compromisso de formar a juventude e lutar pela dignidade dos docentes. Queremos tomar a política nas mãos e enfrentar a educação financeirizada que nos reduz a objetos de sua gestão

OUTRASPALAVRAS

DIREITOS OU PRIVILÉGIOS?

por Blog da Boitempo

Publicado 23/03/2023 às 16:39 - Atualizado 23/03/2023 às 16:42

Por Carolina Catini, no Blog da Boitempo

1.

Finalmente, o debate acerca dos efeitos deletérios da reforma do ensino médio saiu dos círculos mais estritos de quem está em constante contato com a educação da juventude e com o trabalho da imensa categoria de docentes da rede básica. As manifestações pela revogação da reforma que ocorreram em todo Brasil neste mês de março tiveram efeito no alcance do debate, que ganhou espaço nas redes sociais, na mídia tradicional, assim como chamou a atenção de intelectuais e militantes de outros setores e movimentos. A denúncia acerca dos conteúdos do Novo Ensino Médio é imprescindível para a luta, uma vez que a formação massiva da juventude é elemento extremamente relevante na composição das relações de uma dada conjuntura. Mas é preciso também que se atente para a forma social da educação. A análise de que o tempo de escolarização está sendo gasto para se aprender a fazer brigadeiros caseiros, jogar RPG, saber “o que rola por aí” e ajustar os “projetos de vida” à precariedade do empreendedorismo dos pobres, é tão importante quanto trazer à tona o desprezo pela formação especializada de professores e professoras de sociologia, história, geografia, física, química, artes etc. e, consequentemente, de tais conhecimentos. Não obstante, a crítica precisa ainda considerar que a reforma do ensino médio, assim como grande parte das transformações organizacionais e pedagógicas que estão em curso na educação, fazem parte das estratégias de uma ampla dominação empresarial e financeira. A privação da formação intelectual da juventude e a degradação das condições de trabalho docente, em meio ao descalabro da educação estatal, são antes de tudo frutos de anos de trabalhos e projetos de empresários, acionistas e investidores em “negócios sociais”, embora não se possa subestimar o papel de quem governa no aprofundamento da “parceria” entre empresa e Estado.

2.

Em setembro de 2022, pouco antes das eleições, a “ONG que foi o MEC da Sociedade Civil” venceu o “Prêmio Empreendedor Social”, segundo a Folha de São Paulo. O mesmo jornal que financia, seleciona e faz propaganda de empresas que prestam serviços sociais, assim como – é claro – faz marketing de seu próprio investimento neste setor, noticiou que o critério decisivo para escolha do Todos Pela Educação (TPE) foi o êxito da atuação da organização para a retomada das escolas durante a pandemia

Não espanta que outra organização tenha feito as vezes do MEC durante o governo Bolsonaro, sobretudo no período crítico da pandemia e de gestão pela negação e máxima brutalidade que conhecemos bem. Mas isso não se deve ao fato de que a organização governamental tenha sido completamente inoperante no período. Além dos efeitos do amplo corte de gastos e da implementação do programa cívico-militar de escolas básicas, houve uma inédita experimentação do “efeito propaganda” de programas não implantados, mas colocados em pauta pelo governo e seus ativistas. Isso não foi nada desprezível em termos de gestão, pois alterou e deixou marcas em nossas práticas e embates em nossos ambientes de trabalho. A disputa entre esses projetos conservadores não implementados formalmente (como o Escola Sem Partido em conjunto com toda pauta ligada à “guerra cultural”), os projetos neoliberais (como o Future-se)1 e a militarização, refletiu-se também na dança das cadeiras de ministros.2 A concorrência pelo controle da educação diferenciava os programas, ao mesmo tempo em que explicitava o que é comum a todos: uma noção de política social contra o povo, que expandiu a rapinagem de recursos públicos para além do mercado já cativo do empresariado, e chegou aos pregadores do evangelho e do agronegócio, renovando, assim, as formas de inscrição do Ministério em seu histórico de escândalos.3 O pior dos temporais aduba o jardim,4 e ainda colheremos frutos apodrecidos do bolsonarismo nessa reedição de “redemocratização”.

O que espanta é que a apropriação privada dos mecanismos de gestão e controle da educação estatal por organizações empresariais esteja tão naturalizada ao ponto de tais entidades serem premiadas e apresentadas como se fossem apenas ONGs benevolentes e filantrópicas, que salvaram a educação do bolsonarismo. É verdade que os programas emergenciais da pandemia, a criação de estruturas de ensino à distância e de retorno presencial, aconteceram e foram coordenadas pelo TPE e outras organizações empresariais, do mesmo modo que nenhum encaminhamento deixou de ser dado em políticas polêmicas, como a expansão da rede de escolas de tempo integral e de implementação da Reforma do Ensino Médio. Isso porque tais políticas têm sido construídas e encaminhadas por fundações e institutos empresariais que atuam na mudança das políticas, mas também em laboratórios de experimentação de formas pedagógicas e de organização do trabalho educativo que se instalaram na educação formal e não formal desde os anos 2000.

O fato de que o TPE possa exercer tarefas que substituam parte das funções do MEC apenas reflete o grau de aparelhamento e apropriação privada dos mecanismos de gestão e controle da educação estatal por organizações empresariais. O problema é que o “nexo entre o MEC e o TPE não é apenas conjuntural”, como nos avisavam Olinda Evangelista e Roberto Leher, já em 2012.5 Já faz tempo que “a base programática da educação pública, historicamente ponto central de programas partidários, tornava-se uma base programática empresarial” como já estudou Virgínia Fontes (2017). Mesmo a assinatura da medida provisória que instituiu a Reforma é muito mais fruto da advocacy6 empresarial do que do trabalho de qualquer governo ou partido. Que a canetada tenha sido dada no período de Temer, deixa mais fácil para os governos não transitórios lavarem às mãos por sua responsabilidade de deixar livre o caminho para que as estruturas carcomidas e sucateadas da educação estatal sejam preenchidas pelo trabalho de organizações privadas. Essa ocupação tem expandido os tentáculos empresariais por anos a fio de modo que ela passou a compor de modo orgânico a gestão da educação, sem, no entanto, apresentar-se como plano de reorganização da educação, suprimindo a possibilidade de decisão política, e, em grande medida, eliminando as possibilidades de confrontos e embates entre projetos de educação.

O Todos Pela Educação foi criado em 2006 por meio de uma convocatória da Holding Itaú-Unibanco. Em seu documento de fundação constam nomes de presidentes das empresas e instituições financeiras das mais lucrativas do país, além políticos e ativistas dos direitos sociais. Na lista dos sócios fundadores aparece o nome do então ministro da educação e ex-analista de investimentos do Unibanco, Fernando Haddad – que inclusive batizou seu plano de educação de “Compromisso Todos Pela Educação”. O TPE é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, mas só onde “a sociedade civil é Estado e este é sociedade civil” (EVANGELISTA; LEHER, 2012), ou quando passamos a crer numa realidade paralela na qual existam empresas que abnegam a razão de sua existência, que é lucro, para atuar contra as desigualdades sociais que – como é obvio – as sustentam.

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